Em um país que tem 10,5 milhões de miseráveis, ou seja, que vivem como indigentes e não possuem sequer condições de se alimentar, assomados a 28,6 milhões de pobres, assim qualificados ante ao fato de que têm o dobro da renda da linha de miséria, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, fica claro que quase 20% da população brasileira ainda não possui os mínimos necessários para viver.
Os indicadores mostram a baixa escolaridade, a disparidade da distribuição de renda, a falta de moradia, a saúde precária, a fome e a desnutrição, assomadas à ampla demografia do Brasil, são os maiores ingredientes desse quadro.
No entanto, e não menos importante, destaca-se a ausência de gestão eficiente pelo Governo, em especial no controle do consumo de ativos do erário, evitando que a chaga da corrupção que assola o orçamento público possa tirar do pobre ao menos a comida.Apenas o valor contabilizado (diga-se de passagem, sem muito parâmetro, eis que alimentados com dados da operação Lava-jato da Polícia Federal) pela Petrobras, como fruto de corrupção, ou seja, R$ 6,2 bilhões, seria suficiente para distribuir, no mínimo, uma cesta básica para cada miserável/ pobre do país.
É claro, então, que o Estado por si só não possui arsenal para a erradicação de tais chagas, de modo que ele carece da ajuda da sociedade civil organizada, que funciona como sua longa manus (extensão), e não como mero coadjuvante que integra o Terceiro Setor. A prova disso é que milhares de vidas são diariamente promovidas por ela em nome dele, quer por meio da assistência, da saúde ou da educação. Sem as instituições, seguramente os números apontados pela PNAD seriam mais catastróficos.
Para prover o referido múnus público, a Constituição Federal de 1988 acalentou uma limitação ao Estado, que é a de não tributar (com impostos1 e contribuições2) a sociedade civil organizada, reconhecida como beneficente, dado que o inverso seria como tributar o próprio Estado, para que o valor dos referidos tributos sejam convolados em ações sociais. Em outras palavras, o Estado tira o recurso de um bolso para lançá-lo em outro.
No entanto, o governo, agindo em nome do Estado, ao invés de aliar-se, debater e buscar alternativa para a saúde econômica das beneficentes, dado que elas assumiram a função estatal, preferiu legislar de forma uníssona, em prol apenas do enriquecimento do erário, lançando uma vala econômica a tais entes privados de interesse público, desembocando em um grande duelo judicial, cujo tema gravita nas lides fiscais de quase todos os Tribunais Estaduais.
Ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal deve colocar, em breve, uma pá de cal em tal imbróglio jurídico, de modo que cabe refletir quais reflexos e/ou consequências visitarão a operação da entidade beneficente.
O legislador constitucional de 1988, ao regular o financiamento da seguridade, assim o fez: “Art.195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: “I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro;...”.
Relevando que a Constituição Federal é pragmática, cabe ao Congresso Nacional regular, por meio de legislação própria, as matérias nelas contidas. No que diz respeito ao financiamento da seguridade social, objeto do referido artigo 195, o Congresso manteve-se inerte e deixou de legislar, de modo que foi colocado em mora pelo STF, por advento de um Recurso Extraordinário. O ato judicial levou à promulgação da Lei nº 8.212/91.
Do texto primitivo da referida lei, constava do “Artigo 55: Fica isenta das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 desta Lei a entidade beneficente de assistência social que atenda aos seguintes requisitos cumulativamente: ... III - promova a assistência social beneficente, inclusive educacional ou de saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes;”.
Logo se entende que a legislação originária não impunha qualquer limitação ou quantificação percentual de gratuidade para que a entidade beneficente pudesse ter reconhecida sua (NOTA DE RODAPÉ) “isenção3” tributária.
Entretanto, em 11 de dezembro de 1998, foi promulgada a Lei nº 9.732, que alterou os critérios da “isenção”, uma vez que sua redação alterou aquela acima descrita, constante do inciso III, limitando que o benefício somente seria devido àquelas entidades que: (i) prestassem serviços exclusivamente gratuitos às pessoas carentes; ou (ii) atendessem pacientes do SUS em volume não inferior a 60%; ou (iii) condicionando a isenção na proporção do financiamento da saúde e/ou escolar.
O velho ditado já dizia: “dois pobres não se sustentam”, isto é, para que a entidade beneficente possa servir ao Estado, ela não pode agir como ele, ou seja, servir-se da arrecadação tributária – apenas para bancar o custo da máquina pública. É necessário, então, que ela produza recursos para sua sustentabilidade, ao ponto de não depender tão somente da “vaca leiteira do Estado”.
Porém, a Lei nº 9.732/98 vedava qualquer venda de serviço social, e soterrava a própria subsistência do ente beneficente, pois ele gasta muito mais com a promoção humana do que recebe do Estado, por meio do não recolhimento do tributo. De outro lado, segundo a lei, o ente que não cumprisse a determinação legal estaria impedido de usufruir a “isenção” tributária das contribuições sociais.
Traduzindo, a lei determinava aos entes sociais: - “Promova a educação, a saúde e assistência, apesar de ser dever do Estado, e não seu, com recursos próprios, não cobre nada pelos seus serviços, inclusive daqueles que podem pagar, senão lhe suprimo a isenção”.
Diante de tais despautérios da lei, além da falta de diálogo com o Governo, não restou alternativa aos entes sociais que não o aforamento de medidas judiciais, as quais estão em foco para breve decisão no STF.
A Confederação Nacional de Saúde-Hospitais, Estabelecimentos e Serviços-CNS foi a autora da referida ADIN, sendo que requereu ao STF que declarasse inconstitucional os artigos 1º, que alterou o inciso III do artigo 55 da Lei nº 8.212/91, bem como os artigos 4º, 5º e 7º da Lei nº 9.732/98, os quais impõem aquelas restrições ao acesso da “isenção” pelas entidades beneficentes.
O Plenário do STF, cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio, decidiu pela concessão da liminar, retirando a eficácia daqueles dispositivos.
Cabe observar que o pano de fundo contido na ação e na liminar visa a estabelecer qual espécie de lei pode impor limitações ao poder de tributar às entidades beneficentes. Isto porque consta do artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição, o seguinte: “§ 7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”.
A União defende que a Constituição remete à Lei Ordinária (aquela que requer apenas um quórum de votação de maioria simples do Congresso Nacional – vide artigo 47 da CF/88) ou à Lei Complementar (aquela que carece de um quórum de maioria absoluta – vide artigo 69 da referida Constituição).
Já a autora da ação CNS advogada na tese de que somente a lei complementar pode limitar o poder de tributar, com base no artigo 146, II da CF/88.
Ao conceder a liminar, o STF se filiou à tese da autora, sendo que, ao ser colocado em julgamento a referida ADIN em 04/06/2014, os ministros Joaquim Barbosa, Carmem Lúcia e Luiz Barroso votaram pelo provimento parcial da ação, sendo pedido vistas pelo ministro Teori Zavascki, o que se suspendeu o julgamento, o qual pode ser retomado em breve.
Em outro recente caso similar em curso no STF, Recurso Extraordinário 566.622, cujo mérito é praticamente o mesmo, os ministros Marco Aurélio, Carmem Lúcia e Luiz Barroso também entenderam que as limitações ao poder de tributar deve ficar a cargo da lei complementar, e não da ordinária. De igual sorte, o mesmo ministro Teori pediu vistas do processo, também suspendendo o julgamento, que pode a qualquer momento ser retomado.
Cabe sublinhar que, se aquele referido caso vier a ser provido, ele não terá efeito erga omnes, ou seja, somente valerá para a autora. Porém, como foi recepcionado com Repercussão Geral, influenciará em todos os demais julgamentos que estão tramitando perante os Tribunais Regionais. No entanto, se a ADIN for julgada procedente, o efeito é erga omnes, isto é, valerá para todas as entidades beneficentes.
Os efeitos de uma eventual decisão favorável pelo Supremo Tribunal Federal poderão: (i) anular os efeitos da Lei nº 9.732/98, desde a sua origem, efeito ex tunc; (ii) aplicar a teoria da modulação, ora prevista na Lei nº 9.868/99 – artigo 27, que permite que os seus efeitos sejam aplicados a partir do julgamento, efeito ex nunc.
Caso o STF entenda aplicável o efeito ex tunc, na prática caem por terra todos os autos de infrações fiscais baseados na Lei nº 9.732/98. Porém, o mais importante deste julgamento será o reflexo imediato sobre a Lei nº 12.101/09, que não tem o status de Lei Complementar, mas sim ordinária, e que, a exemplo da Lei nº 9.732/98, impõe restrições ao acesso da “isenção” das contribuições sociais pelas entidades beneficentes.
O eventual provimento da ADIN não afetará diretamente os processos fiscais julgados com base na Lei nº 12.101/09, ora alterada pela Lei nº 12.868/13, pois o mérito dela não está jungido à nulidade por supedâneo da atual lei, mas o fundo do julgamento poderá ser invocado por todas as entidades beneficentes que foram punidas fiscalmente, com base na referida lei, que não pode impor limites de gratuidades para fins do gozo da imunidade tributária das contribuições sociais, pois tal regulação cabe apenas à Lei Complementar, no caso, Código Tributário Nacional, em especial os artigos 9º e 14º.
Na prática, todos os recursos administrativos das entidades beneficentes, ora pendentes de julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), lançados contra autuações baseadas na Lei nº 9.732/98, terão que seguir a ordem do STF, caso provida a ADIN, com efeito ex tunc, ante a vinculação operada e prevista no Regimento Interno daquele órgão, artigo 62, no inciso I do seu parágrafo 1º.
Já quanto aos processos que se encontram em sede judicial, poder-se-á também se invocar o julgamento favorável da ADIN, para que o magistrado ou o Tribunal o reconheça quando do julgamento do mérito da ação singular, o caráter vinculante, pois assim determina o STF: “É preciso enfatizar, por relevante, que o Supremo Tribunal Federal tem assinalado, em diversos julgamentos, que a existência de pronunciamento anterior, emanado do Plenário desta Suprema Corte ou do órgão competente do Tribunal de jurisdição inferior, sobre a inconstitucionalidade de determinado ato estatal autoriza o julgamento imediato da causa, não importando se monocrático ou colegiado, sem que isso configure violação à reserva de plenário (...):” (Rcl 17185 AgR, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 30.9.2014, DJe 27.11.2014).”.
A entidade beneficente que foi autuada sob os efeitos da Lei nº 9.732/98 e, caso ela venha ser rechaçada pela a ADIN 2028, poderá requerer a “repetição do indébito” em sede judicial, lembrando que os tributos da mesma espécie poderão ser compensados. Porém, deve-se observar o prazo decadencial de cinco anos a contar do lançamento do tributo, aliás, este é o entendimento do STJ:
“Ementa: Tributário. Processual Civil. Compensação. PIS. Prescrição. 1.No âmbito do lançamento por homologação, são compensáveis diretamente pelo contribuinte os valores recolhidos a título de FINSOCIAL com a COFINS, todavia a compensação do FINSOCIAL com o PIS não é admitida. 2. O PIS sujeita-se ao lançamento por homologação, faltante este, o prazo decadencial só começa a fluir após o decurso de cinco anos da ocorrência do fato gerador, somados mais cinco anos, contados estes da homologação tácita do lançamento. (RESP 297292/MG).”.
O STF quando proferiu o recente voto do ministro Marco Aurélio, ora Relator no referido Recurso Extraordinário, reconheceu que toda regulação que vise restringir a imunidade fiscal, por meio de lei ordinária que extrapole a previsão dos artigos 9º e 14º do Código Tributário, é inconstitucional, assim caso o recurso venha a ser procedente, ele terá efeito oblíquo nos julgamentos dos processos relacionados ao Certificado de Entidade Beneficente, pois se o CEBAS representa um dos principais requisitos para o acesso à imunidades das contribuições sociais, não poderá o legislador ordinário promover outra restrição, por meio de dificultar a sua concessão.
No entanto, torna-se necessária a cautela, no sentido de aguardar os julgamentos acima destacados, para que o mérito possa ser invocado em cada caso específico.
Enfim, a esperança é que fechemos um ciclo, com o esperado provimento da ADIN e daquele Recurso Extraordinário. Porém, não nos iludamos, pois muito debate jurídico ainda teremos pela frente, mais fortalecidos do que antes, e confiantes de que o Estado reconheça que as entidades beneficentes não são apenas uma sociedade organizada e mera coadjuvante, mas sim suas irmãs siamesas, com um detalhe de diferença: mais competentes e eficazes!
1Art. 150, VI, c.
2Art. 195, § 7º.
3O STF entende que houve um erro do Legislador, na verdade é Imunidade.
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