Descumprimento de ações já previstas pela Política Nacional do Idoso, que completa 10 anos, coloca em cheque recém-criado Estatuto do Idoso
Com a aprovação do Estatuto do Idoso, os brasileiros se vêem às voltas com a questão dos direitos de uma parcela da população muitas vezes relegada à indiferença e até mesmo aos maus-tratos de indivíduos, entidades assistenciais e órgãos públicos.
Segundo Serafim Fortes Paz, presidente da Associação Nacional de Gerontologia e membro da Comissão Nacional de Articulação da Política Nacional do Idoso, a sociedade e, em particular, as autoridades brasileiras, adiaram encarar o fato do envelhecimento populacional, apesar do alerta que vem sendo feito desde a década de 60 por organizações internacionais e nacionais justamente na perspectiva de evitar se chegar ao atual quadro caótico do idoso no País. Para mudar tal situação, bastaria implementar as políticas intersetoriais previstas nas ações integradas da Política Nacional do Idoso (PNI) e incentivar a participação social dessas pessoas a se comunicarem com o mundo que as cercam, afirma.
Como se percebe, muito antes da criação do estatuto, outras leis já definiam diretrizes sobre direitos e proteção do idoso, como a PNI (8.842/94). Essa lei irá completar 10 anos em janeiro de 2004, mas as ações dela continuam pulverizadas, fragmentadas e isoladas. Exemplo disso é o Conselho Nacional do Idoso previsto pelo texto, que não foi criado até hoje, diz Serafim.
Também compartilha desta opinião Maria José Ponciano Sena Silvestre, coordenadora geral do Instituto Vivendo de Desenvolvimento Integral da Terceira Idade, entidade sem fins lucrativos que desenvolve obras nas áreas de interesse do idoso, contribuindo para o debate sobre a qualidade de vida no envelhecimento e o resgate da cidadania. Ela declara que a PNI ainda não conseguiu ser implementada, apesar de ter sido um avanço ao prever a co-participação dos conselhos nacionais, estaduais e municipais na promoção social do idoso e relacionar as competências das áreas de saúde, educação, habitação e respectivos órgãos.
Segundo a coordenadora, entre as disposições desse documento, destacam-se o estímulo à fundação de locais de atendimento, como centros de convivência, de cuidados diurnos, casas-lares e oficinas de trabalho; a criação de universidade aberta para a terceira idade; formas de impedimento da discriminação ao idoso e a participação do mesmo no mercado de trabalho. O que existe na prática é muito pouco. O poder público deve atender à legislação, instituindo mais conselhos de idosos, centros de convivência etc., além de fornecer condições legais e administrativas para que as pessoas nessa faixa etária possam ter garantidos os direitos referidos, completa.
A saúde pública e o INSS são outros pontos críticos nos quais o governo terá de repensar se quiser oferecer bom atendimento e uma vida mais tranqüila ao idoso. O setor de saúde vem sofrendo cortes e restrições nos últimos anos, agravando o quadro principalmente para os carentes. No caso do INSS, mais de 60% dos aposentados que dependem do benefício mal conseguem cobrir as despesas com medicamentos, comenta Serafim.
E o resultado da crise nessas áreas já é conhecido: hospitais e postos de saúde lotados, sem leitos e com longas filas de espera para a marcação de consultas, escassez no número (e na motivação) de profissionais, falta de remédios etc. A tendência é apenas piorar com o passar do tempo, com o aumento do número de pessoas na terceira idade, como lembra Maria José: O crescimento desse público é um enorme desafio para o Brasil e representa fortes pressões sobre os sistemas de aposentadoria, saúde e assistência social.
Ao menos no que se refere ao trabalho das organizações sem fins lucrativos, o cenário é mais animador para os especialistas. A mudança no foco das atividades dos chamados grupos de convivência, por exemplo, vem sendo fundamental na criação de uma nova consciência. Há uma preocupação maior em estimular a percepção da cidadania, que tem permitido transformar a auto-estima do idoso, afirma a coordenadora.
Outro fator de destaque na atuação das ONGs está relacionado à importância no cultivo do corpo e da mente e no aspecto familiar e social. O incentivo a fazer amigos e não ficar isolado também ajuda os idosos a conquistar melhor qualidade de vida e gozar de mais respeito social, completa Maria José.
Já de acordo com Serafim, a existência de fóruns e conselhos de idosos, centros de convivência e de organizações como o SESC, principalmente nos grandes e médios centros urbanos, é ainda uma pequena mostra de programas e ações governamentais e não-governamentais que têm melhorado as condições desses indivíduos. No entanto, ele acredita que a criação de tais grupos e muitas outras ações previstas pela PNI já deveriam ter sido implantadas, evitando situações graves enfrentadas atualmente pelos mais velhos: Nos últimos anos, temos assistido a calamidades que beiram a barbárie, como mortes em clínicas e episódios desumanos em asilos.
O volume de denúncias recebidas pelos poucos serviços de proteção aos idosos (como o Ligue-Idoso, no Rio de Janeiro; o Disque-Denúncia, a Delegacia de Proteção ao Idoso e o Setor de Atendimento ao Idoso) tem demonstrado o crescimento no índice de maus-tratos.
O Disque-Denúncia recebeu, somente em setembro deste ano, mais de 600 comunicados. Contudo, as ações ainda são muito limitadas, já que quase não existem unidades de atendimento especializadas. São Paulo, a maior cidade brasileira, dispõe somente de um órgão: a Delegacia de Proteção ao Idoso localizada no centro, que funciona de segunda à sexta-feira, das 9h às 18h, com um único delegado titular, oito investigadores quatro inativos por doença ou próximos de aposentadoria e duas viaturas.
Dados do Disque-Denúncia revelam ainda que não há infra-estrutura apropriada, de forma que a delegacia não consegue atender adequadamente aos denunciantes de todas as regiões de São Paulo e aos comunicados enviados pelo próprio serviço telefônico. Segundo os coordenadores do Disque-Denúncia, a maioria das informações que chegam é sobre abandono por familiares ou maus-tratos em asilos e casas de repouso. Os dados são repassados à Delegacia de Proteção ao Idoso, mas não há resposta se os casos denunciados foram resolvidos.
Apesar de todo o esforço já realizado por órgãos públicos e privados na luta por melhores condições de vida ao grupo da terceira idade, o cumprimento da legislação brasileira ainda vai depender muito da própria compreensão e apoio da sociedade. A necessidade de um trabalho junto à população é um dos motivos que vêm causando desconfiança por parte dos próprios idosos quanto à eficácia do estatuto. É preciso pensar se ele vai conscientizar as pessoas com relação aos direitos do idoso, que é cidadão como todos, alerta João Ignácio Villas Boas, de 73 anos, presidente da União dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (entidade que representa 5.400 idosos). Ele põe em discussão o que talvez muitos ainda não tenham se dado conta: a maneira como a sociedade vê e trata os idosos.
Em São Paulo, por exemplo, é só fazer o teste. Entre num vagão lotado do metrô ou em qualquer outro transporte público e perceberá que a dúvida de Villas Boas é pertinente. A população realmente não respeita o idoso. Há pouco tempo, o metrô paulistano, numa tentativa de sensibilizar seus usuários já não bastasse diferenciar com a cor cinza os assentos reservados aos mais velhos e a pessoas em outras condições e colocar um aviso logo acima , chegou ao ponto de colar nas próprias cadeiras um adesivo chamando a atenção para aquilo que deveria ser prática de bom senso. E não pára por aí: até hoje se ouve os condutores alertando para o uso dos assentos especiais. Mesmo assim, ainda são muitos os que ignoram as recomendações de cidadania.
O enorme distanciamento com pessoas de outras faixas etárias é outra realidade que preocupa Serafim e é responsável por grande parte do desrespeito da sociedade em geral. Há uma perversa lógica de apartheid etário, que compromete a convivência intergeracional, a memória social e a troca entre gerações necessária para o idoso, revela o presidente da ANG.
Ele diz que, apesar disso, percebe atitudes de reconhecimento sobre àqueles com mais de 60 anos, no entanto, sentimentais ou de compaixão. Por outro lado, existem os que vêem o idoso como alguém incapacitado, improdutivo e não mais útil, que se torna dispendioso. Segundo Serafim, há muito que fazer para romper esse imaginário social sobre o idoso, principalmente voltado aos mais pobres, geralmente doentes, analfabetos e dependentes de políticas públicas, que são bastante desprezados e passam por situações graves.
Se hoje se fala em exclusão social do deficiente físico, dos negros ou dos índios, os idosos também não ficam atrás, por estarem sujeitos ao preconceito e à discriminação. Aos 40 anos, a idade já é um peso no mercado de trabalho, o que acaba causando sofrimento e angústia, diz Maria José. Ela confirma que a obsolescência do conhecimento é o principal motivo, daí ser vital a constante atualização e reciclagem como formas de retardar tal processo. A II Assembléia sobre Envelhecimento da ONU recomendava aos países saber aproveitar a capacidade e experiência dos mais velhos, pois é preciso enxergar o valor da sabedoria, completa.
Mudar a visão das pessoas sobre os idosos, portanto, é somente uma questão de informação. Nesse sentido, o Estatuto do Idoso pode ajudar ao instituir currículos escolares na área de Gerontologia.
Se mais esse dispositivo criado pelo governo realmente terá êxito, somente o tempo dirá. É sempre bom lembrar, entretanto, que quem não dispõe de muitos anos de espera é o próprio idoso. Para assegurar condições dignas aos 14 milhões de idosos presentes e aos prováveis 34 milhões nos próximos 25 anos, é preciso aplicar logo as políticas públicas e incentivar a sociedade a ser uma verdadeira aliada ao fazer com que os idosos saiam da condição de coadjuvantes e passem, reconhecidamente, ao papel de protagonistas de sua história e cidadania, conclui Serafim.