O acesso da pessoa com deficiência intelectual no mercado de trabalho demanda mudanças na ética das empresas?

Por: Sérgio Sampaio Bezerra
01 Janeiro 2008 - 00h00

Este artigo discute a questão ética nas organizações, destacando, como foco central do debate, a gestão de pessoas com deficiência intelectual inseridas no mercado de trabalho. Para isso, considerou um estudo recente, intitulado “Educação Profissional e Trabalho para Pessoas com Deficiência Intelectual e Múltipla – Plano Orientador para Gestores e Profissionais” sobre a inclusão dessas pessoas nas empresas e realizou entrevistas com gestores de instituições que dispõem de pessoas com deficiência intelectual em seus quadros.

A revisão bibliográfica e os resultados das entrevistas apontaram para o que entendemos como “dilemas éticos” a serem enfrentados pelos gestores de organizações que recebem trabalhadores com deficiência intelectual. Também indicaram a necessidade de realizar estudos mais aprofundados sobre as especificidades implicadas nas relações e na conduta dessas pessoas, em ambientes de trabalho.

A deficiência intelectual e o trabalho

No Brasil, segundo os dados do censo 2000 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístico (IBGE), 14,48% da população, ou seja, 24,5 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. Desses, 2,8 milhões são deficientes intelectuais. A inclusão da pessoa com deficiência é prioridade na política pública social. Por isso, resultou em uma legislação própria voltada para a obrigatoriedade de garantia de emprego para esse grupo, considerado vulnerável.

Para promover a inserção das pessoas com deficiência no mundo do trabalho, a legislação brasileira estabeleceu uma reserva legal de cargos que ficou conhecida como a Lei de Cotas (art.93 da lei n° 8.213/91), que prevê que a empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: de 100 a 200 empregados, 2%; de 201 a 500, 3%; de 501 a 1.000, 4%; e de 1.001 em diante, 5%.

Uma pesquisa de demanda de trabalho para pessoas com deficiência intelectual, realizada em 2006 pela Federação Nacional das Apaes (Fenapaes) mostra que, atualmente, do total dos trabalhadores com deficiência empregados, 50% são pessoas com deficiência física; 23% auditivas; 14% intelectual; e 11% visual. Foram pesquisadas 1.146 empresas em todas as regiões brasileiras. Os dados indicam que as oportunidades de emprego, no Brasil, para pessoas com deficiência intelectual cresceram sensivelmente em função da legislação.

Diante disso, faz-se necessário o entendimento – por parte de empregados e empregadores do setor empresarial – do que é a deficiência intelectual, a fim de que estejam preparados para receber esses trabalhadores, assegurando-lhes, sobretudo, condições favoráveis para o bom desempenho profissional.

Em complemento ao estudo, foram realizadas entrevistas (com perguntas abertas) com três executivos de três instituições que empregam pessoas com deficiência intelectual. Na oportunidade, eles relataram situações em que tiveram dúvidas quanto à atitude a ser tomada, considerando a ética das suas organizações.

Primeiro caso

M.S., 33 anos, portador da Síndrome de Down. Teve sua primeira experiência profissional em uma grande rede de sanduíches, fazendo ali o serviço de atendente, sendo sempre bem avaliado. Atualmente, trabalha no serviço público. Assumiu a função de office boy, atende também ao telefone e cuida do recebimento de todas as correspondências. Seus colegas de trabalho não tinham expectativas em relação ao seu rendimento, porém, em pouco tempo ele provou o contrário. Pela sua eficiência, foi assumindo outras funções.

Não gostava de ficar parado, sem fazer nada e sempre executou suas atividades com facilidade. Fez amizade em todo o ambiente de trabalho, tramitava em todos os lugares e com sua simpatia conquistou a todos, o que favoreceu muito a execução das suas atividades profissionais. Dois fatos sérios ocorreram em três anos de trabalho. Um foi quando na agência de correios, onde postava as correspondências, um funcionário do local fez uma brincadeira em relação ao seu time de futebol que havia perdido.

Não gostando do fato, avançou agressivamente para o outro funcionário, criando uma grande confusão que precisou da interferência do seu chefe para superar o incidente. Em outra ocasião furtou, de dentro da gaveta de sua chefa, dinheiro que os colegas recolhiam para comprar lanche. Foi descoberto sem dificuldade, pois, quando pressionado, confessou facilmente o ato, afirmando que pegou o dinheiro, pois estava com fome e queria lanchar.

Isso mostra que para ele o fato não era visto como um furto. Em todas as ocasiões, houve a abordagem dos superiores, com autoridade e ameaça de demissão. Seus pais eram comunicados e, na segunda situação, entenderam que deveriam levá-lo ao psicólogo, onde iniciou sessões terapêuticas. Nas duas ocasiões percebeu-se que em seu ambiente familiar também havia algum transtorno.

Segundo caso

D.B., 25 anos, portadora de deficiência múltipla (deficiência física e intelectual). Ingressou profissionalmente em uma entidade nacional de defesa da pessoa com deficiência, para exercer função de recepcionista. Muito educada, atenciosa, sempre tem uma palavra de elogio e mostra-se bastante agradável com os colegas de trabalho.

Quando lhe é dada oportunidade, faz defesa contundente dos seus direitos, expressando-se com facilidade, impressionando a todos pela consciência sobre o que lhe resguarda a lei. Mas, segundo o entrevistado, o seu desempenho profissional deixa a desejar, pois se confunde com os recados, é distraída, esquecida e muito fantasiosa. Criou histórias, contou mentiras – todas desvendadas ora pela mãe, ora pelas pessoas que acabavam descobrindo a farsa – que, de tão detalhadas, chegaram a convencer os colegas como fatos verossímeis.

Os colegas já não confiam em seu trabalho e não lhe delegam mais atividades, depois de várias tentativas sem resultados. O gestor reconhece que a demissão é inevitável, considerando o mau desempenho da funcionária, porém, enfrenta um dilema ético, pois essa atitude seria incoerente com a defesa da instituição.

Terceiro caso

G.S., 22 anos, deficiente intelectual, trabalha em um abatedouro de frangos. É elogiado pelos patrões e colegas. Em certa ocasião, surpreendeu um colega furtando frango no serviço e repreendeu-o por sua atitude. Porém, o colega recorreu no delito e estimulou G.S. a fazer o mesmo. Todavia, este se negou a cometer tal ato, dizendo que isso não era certo.

O fato foi registrado por uma câmera que fiscalizava o ambiente, que flagrou o ocorrido. Acarretou demissão para o infrator. G.S, reconhecido e respeitado por todos, transformou-se em exemplo de honestidade e dignidade.

Análise

O primeiro relato mostra que as pessoas com deficiência intelectual podem ser agressivas no trabalho, além de indicar que o nível de entendimento do certo e do errado pode ser diferente das pessoas que não têm deficiência intelectual.

No segundo caso, observa-se que as fantasias criadas pela funcionária podem levá-la a mentir constantemente, perdendo a confiança tanto dos colegas de trabalho quanto da organização. Mesmo com uma avaliação negativa quanto ao seu desempenho profissional, a empresa tem dificuldade em demiti-la, por questões eminentemente éticas.

O último caso mostra que as pessoas com deficiência intelectual têm perfeita noção do errado; ou seja, quando a ação é errada – e isso é percebido – eles não cometem transgressão ética.

Faz-se necessário o entendimento – por parte de empregados e empregadores do setor empresarial – do que é a deficiência intelectual, a fim de que estejam preparados para receber esses trabalhadores


Conclusão

Apesar de a legislação garantir a colocação de pessoas com deficiência intelectual no trabalho, o estudo demonstrou que a grande maioria das empresas não consegue cumprir as exigências da Lei de Cotas e que somente empregam pessoas com deficiência devido à existência da mesma.

Portanto, faz-se imprescindível criar mecanismos de acesso à pessoa com deficiência intelectual ao mercado de trabalho, para a sua efetiva inclusão social. A idéia de inclusão se fundamenta no reconhecimento da diversidade existente na vida em sociedade, o que garantiria a todos os indivíduos as oportunidades, independentemente de suas especificidades.

A ética estuda a moral, mostra qual atitude tomar, ensina a definir o que é certo e o que é errado e aponta a melhor maneira de agir coletivamente. Por meio da avaliação e compreensão dos costumes, diz quais ações são moralmente válidas e quais não são. A ética tende a estabelecer os princípios de valorização e condução da vida.

No que diz respeito à ética nas empresas, existem duas vertentes: a ética pessoal, que se divide em ética da convicção (cumpra suas obrigações) e em ética da responsabilidade (você é responsável pelo que faz); e a ética empresarial, que se refere à moral vigente na empresa.

Toda atitude ética prevê a escolha entre vários atos possíveis. De acordo com os relatos feitos pelos empregadores, as empresas se defrontam com alguns dilemas éticos ao empregar pessoas com deficiência intelectual, devido às características peculiares a esse grupo.

Nesse cenário faz-se necessário responder a algumas perguntas. Deve-se ou não adequar os códigos de ética das empresas que empregam pessoas com deficiência intelectual, considerando as suas especificidades, para garantir sua efetiva colocação no mercado de trabalho? Demite-se ou não a pessoa com deficiência intelectual que transgride o código de ética existente na empresa? Como demitir um empregado com deficiência intelectual por mau desempenho no trabalho? As empresas estão dispostas a discutir uma nova ética, a partir da inclusão de trabalhadores com deficiência intelectual?

A recomendação é que sejam desenvolvidas pesquisas que façam abordagens sobre a ética e a gestão da pessoa com deficiência intelectual nas empresas brasileiras, considerando, sobretudo, a escassez – senão a ausência – de estudos que tratem dessa temática com profundidade e devida seriedade que o assunto requer.


FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAEs. Educação Profissional e Trabalho para Pessoas com Deficiência Intelectual e Múltipla – Plano Orientador para Gestores e Profissionais. Brasília: Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), 2007.
MONTEIRO, Janine Kieling; ESPIRITO SANTO, Fabiana Cobas do; BONACINA, Franciela. Valores, ética e julgamento moral: um estudo exploratório em empresas familiares. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 18, n. 2, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722005000200012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 de setembro de 2007.

 

Sérgio Sampaio Bezerra. Secretário executivo da Federação Nacional das APAEs (Fenapaes), graduado em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestrando em Gestão Empresarial pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV-RJ).

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