O feiticeiro, o anjo caído e o Maffesoli

Por: Felipe Mello, Roberto Ravagnani
01 Maio 2011 - 00h00

Costumam ser interessantes os dias em que vou para a rua disposto a ouvir o mato crescer. A caminho de uma reunião em uma empresa, entrei numa perua que me levaria de uma estação de metrô a uma estação de trem. Apesar dos pesares e limitações diversas, especialmente a hora do rush e a parca capilaridade em algumas regiões, é uma opção bastante válida que poderia seduzir mais gente se tivesse tanto apelo quanto as ofertas das montadoras de automóveis.
Recém-acomodado na perua, abri um livro que trata do mal-estar na pós-modernidade. Instantes depois, uma mulher sentada no banco da frente do veículo começou a falar em voz alta. Imaginei que estivesse rezando para si e que findaria logo. Não foi assim. Ela começou a recitar versos apocalípticos, com uma entonação e ritmos cada vez mais viscerais. Vociferava contra aqueles que não se entregam aos braços do seu Senhor antes do Juízo Final. Como eu estava absorto em minha leitura, fiquei na minha. Confesso que havia uma pontinha de curiosidade sobre como se desdobraria aquele culto solo em movimento. Porém, uma nuvem de incômodo se espalhou pelo veículo e motivou o senhor ao meu lado a se manifestar. Inicialmente foram pequenas interjeições, do tipo “shiiiii”.
A cada incursão dele, ela elevava a voz ainda mais, como se já estivesse em um púlpito mirando seu séquito. Ele, então, decidiu partir para a verbalização mais contundente, sugerindo que fosse pregar na igreja dela, pois ninguém era obrigado a ouvir aquela ladainha. As palavras soaram como o estopim para o duelo anunciado. Ela se levantou, virou-se para o fundo da perua, e olhou nos meus olhos de forma intensa. Por alguma razão, imaginou que eu tivesse sido o autor das interjeições e palavras críticas. Fuzilando-me com suas pupilas dilatadas, chamou-me de Satanás e feiticeiro, determinando que eu arderia no fogo do inferno por conta de minha falta de crença. Tomada por uma sensação indescritível, só fiz rir. As pessoas ao meu lado saíram em minha defesa e então começou uma severa discussão, que durou uns 10 minutos até a chegada ao ponto final. Eu, feiticeiro e Satanás recém-empossado, segui caminhando digerindo um quitute mezzo bronca mezzo empatia.
Após a reunião na empresa, meu plano era retornar caminhando até a estação de trem. Distância razoável, que exigiria ao menos uns 25 minutos de sola de sapato. Quando iniciei a empreitada, simultaneamente um carro saía do estacionamento à minha frente. Por um instante, pensei que seria muito interessante vivermos em um tipo de ordem social em que a carona fosse algo tão normal quanto beber água. Quando esse pensamento transgressor se despedia de mim, o motorista me ofereceu uma carona. Inicialmente, não entendi o que ele disse; pensei que queria uma informação, pois não poderia ser verdadeiramente uma oferta de carona. Felizmente, fui vencido pela renovação da oferta; ele realmente estava me oferecendo uma ajuda. Aceitei o mimo. Acomodado no banco do passageiro, agradeci com pompa e circunstância o gesto. Ele recusou o que denominou exagerada polidez, lembrando que era o mínimo que alguém poderia fazer pelo outro. Fazia sentido.
Parece que andamos distantes do mínimo que se poderia esperar das relações interpessoais entre desconhecidos. Oferecer e aceitar caronas, ainda que incorreto em termos de segurança pública, pareceu algo bom em termos de vínculo humano. No trajeto até a estação de trem, o homem me revelou que estava bastante sensibilizado com o que se passara há instantes. Ele havia trabalhado naquela fábrica durante 23 anos em uma importante função na parte da produção. Por motivo de reorganização estrutural, sua função e a de mais centenas de pessoas tinham sido extintas há poucos meses. Apesar da demissão, o que parecia doer nele como agulha quente em carne viva era outra coisa: necessitando de talões de cheque que ainda eram enviados à agência bancária dentro da empresa, ele acabara de ser impedido de entrar no local em que entrara mais de 5 mil vezes (conta arredondada, combinado?) durante mais da metade de sua vida adulta. Transpirava decepção e ira, mansamente. Um anjo humilhado e cadente. A mim, anjo pela oferta de uma improvável carona; aos olhos da empresa, um bebê que, após o corte do cordão umbilical, fora atirado na lata de lixo em vez de ser acolhido em colo materno.
O Maffesoli não entra de gaiato na história. Exatamente o contrário. Ando estudando a obra desse sociólogo e pensador francês. Escreveu livros que tratam de temas ligados ao que ele chama de razão sensível, pensamento compreensivo, tribos urbanas e muitos outros. Por compreensão, ele nos provoca a pensar no verbete latim comprehendere, que tem o sentido de abraçar, incluir, unir. Logo no início do texto usei uma expressão maffesoliana: ouvir o mato crescer. Nutrir a capacidade de perceber as múltiplas possibilidades de uma mesma situação, definindo e explicando menos e compreendendo mais. Assim, quem sabe, temperamos o fel com chocolate. Até porque haja compreensão para continuarmos abraçando um coelho que bota ovos como o saboroso néctar do substrato do cacau!
Parece que andamos distantes do mínimo que se poderia esperar das relações interpessoais entre desconhecidos. Oferecer e aceitar caronas, ainda que incorreto em termos de segurança pública, pareceu algo bom em termos de vínculo humano

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